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O olhar de Lu

Parada em uma calçada movimentada, aquela criança olhava. Olhava sem compreender. Olhava sem ver. Não percebia que estava sendo observada pelos que passavam. Não percebia nem que existia. Embora tivesse recebido, no batismo, o nome de Luísa, para sua mãe ela era Lu, a querida Lu. Ali, naquele momento, não era o nome que importava. Para os que a olhavam com amor, tratava-se de uma criança que precisava de muito carinho e que requeria atenções especiais.

Alguns chegaram a se perguntar como integrá-la na sociedade. Para outros, o problema era mais radical: seria possível tal integração? Para os que olham tudo e todos apenas sob o ponto de vista econômico, sua presença no mundo era vista como um desastre. O que ela poderia produzir? Em que ajudaria a enriquecer o país? Em nada! Absolutamente em nada! Iria, sim, exigir tempo e dedicação de médicos, terapeutas e professores especializados, lugar em hospitais, exames e verbas públicas. E isso não por um tempo determinado, mas provavelmente por toda a vida.

Para a sociedade, a presença de Lu não deixa de ser um desafio, pois alguma coisa precisa ser feita em seu favor. Há uma campanha, uma feira ou uma promoção em favor das muitas “Lu” que estão por aí? Não faltam os que assumem tais desafios e passam a colaborar com as entidades que oferecem assistência a elas. Outros nem admitem pensar na questão, porque estão convictos de que isso não lhes diz respeito.

A presença silenciosa de Lu faz nascerem algumas perguntas radicais: Por que ela existe? Qual o sentido de uma vida assim, uma vez que ela talvez nem tenha consciência de que existe? E de quem é a culpa por suas limitações? Quando as perguntas se renovam e multiplicam não há, infelizmente, tempo e condições para um olhar objetivo, que permita ver Lu como um ser humano que é, criado à imagem e semelhança de Deus. Somente quem deixa de lado a preocupação por culpados ou não se fecha em análises econômicas é capaz de oferecer à Lu a atenção que ela merece. Mais: somente pessoas assim são capazes de perceber a bondade, a inocência e o mistério de amor que o olhar de Lu encerra.

Toda bondade tem sua fonte em Deus; cada gesto de amor é um reflexo de Deus, um sinal de Deus. Não é grave Lu não perceber que, através dela, Deus se dirige a nós, seus filhos e filhas. Grave é que nós, não poucas vezes, somos incapazes de perceber tais mensagens. Afinal, a inocência não é uma falta de pecado, uma ausência de egoísmo ou a incapacidade de se fazer o mal. A inocência é, acima de tudo, o resultado da presença de Deus em uma pessoa.

O olhar de Lu encerra um mistério de amor. Toda vida humana é um mistério. Cada vida humana é marcada pela história de um Deus que quis a participação de outros em Sua alegria – uma participação livre. Ora, a liberdade subentende a capacidade de escolha. Somos livres, inclusive, para deixar de lado o amor e trilhar o caminho do egoísmo. Ora, conforme forem nossas escolhas tais serão as consequências. Lembro isso para advertir que muitos dos problemas que enfrentamos têm como causa nossas omissões ou nossas escolhas erradas.

O olhar de Lu mostra a fragilidade, a delicadeza e as limitações da vida. Tal olhar aponta para valores perenes, que o tempo não destrói, na linha da pergunta de Jesus Cristo: “De que vale ao homem ganhar o mundo inteiro, se vier a perder a vida eterna?” (Lc 9,25). A própria Lu compreenderá isso quando for convidada, um dia, a entrar no reino que o Pai preparou para Seus filhos e filhas. Ali, o amor de Deus completará nela o que lhe falta hoje. Lu, por sua vez, compreenderá o sentido de sua vida e o sinal que foi chamada a ser, enquanto peregrina nesta terra. Em Deus, Lu entenderá a explicação que o apóstolo Paulo deu aos filipenses: “Nós, porém, somos cidadãos do céu. De lá esperamos o Salvador e Senhor Jesus Cristo, que transformará nosso mísero corpo, tornando-o semelhante ao seu corpo glorioso em virtude do poder que tem de sujeitar a si toda criatura” (Fl 3,20-21). Então, a festa de Lu não terá fim.

Por Dom Murilo S. R. Krieger – Arcebispo de Salvador (BA)

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