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“Dos que continuam buscando a Deus”, de Frei Almir Guimarães

1. Que pena que esteja terminando o tempo das comemorações do Menino das Palhas. Em nossas retinas estão presentes, com certa vida, as cenas do tempo do Natal. Os presépios ainda não foram desmontados, nem as árvores de Natal desfeitas. A liturgia eucarística da Igreja na missa de cada dia e os belos textos da liturgia das horas nos pedem que dobremos ainda os joelhos diante do Mistério da Encarnação. Nestes primeiros dias do ano pode ser que venhamos ainda a ficar encantados com essa viagem dos Magos, desses “catadores” de Deus, desses homens de garganta seca que buscaram o rosto de Deus e a casa do Altíssimo e bom Senhor. São Bernardo, escrevendo sobre a Epifania, dessa manifestação de Deus, diz: “Da cidade real, onde julgavam encontrar o rei (os magos), dirigem-se à pequena cidade de Belém. Entram no estábulo e encontram um recém-nascido envolto em panos. Não se aborrecem com o estábulo, não se chocam com os panos, nem se escandalizam com o menino amamentado: prostram-se, veneram-no como rei, adoram-no como Deus. Quem os conduziu, também os instruiu, e quem os avisou exteriormente pela estrela, também os alertou no segredo do coração. Assim, esta manifestação do Senhor tornou glorioso esse dia, e a piedosa veneração dos magos o fez venerável” (Dos sermões de São Bernardo abade, Lecionário Monástico I, p.446).

2. Talvez o Senhor também nos tenha convidado a ir até o presépio do menino, nos alertando no segredo do coração. Os magos tinham vontade de chegar perto de Deus, de conhecer sua casa, de ver seu rosto. Tinham sede do rosto de Deus. A sede de Deus me fala da busca do essencial da vida, busca daquilo que fundamenta o sentido da existência humana, o próprio mistério da vida. Por mais que dele nos acerquemos, desse insondável Mistério, nunca conseguiremos compreendê-lo em plenitude. Será que, em nossa sociedade, as pessoas sentem que a resposta para a sede que arde em nossas gargantas é o próprio Deus, ao menos o Deus cristão? O homem não pode morrer sem saciar essa louca sede! Viver sem sede de Deus não é viver. Não podemos negar que em cada pessoa humana há uma sede profunda do essencial, do radical, da verdade. Ansiamos pela beleza, pelo amor, pela felicidade, uma espécie de desejo de infinito no mais profundo de nós mesmos. Intuímos a possibilidade de uma Presença a ser buscada e acolhida, presença de um Outro, de uma outra Ordem, estranha à nossa capacidade limitada e que responderia a tudo o que arde em nós. Os que experimentam esta sede lançam-se na aventura de Deus. Será que muitos ainda acreditam que Deus é água para suas gargantas?

3. Santo Anselmo parece nos mostrar um caminho: “Vamos, coragem, pobre homem! Foge um pouco de tuas ocupações. Esconde-te um instante do tumulto de teus pensamentos. Põe de parte os cuidados que te absorvem e livra-te das preocupações que te afligem. Dá um pouco de tempo a Deus e repousa nele. Entra no íntimo de tua alma, afasta tudo de ti, exceto Deus ou o que pode ajudar-te a procurá-lo; fecha a porta e põe-te à sua procura. Agora fala, meu coração, abre-te e diz a Deus; Busco a vossa face; Senhor é a vossa face que eu procuro (Sl 26,8) (…) Que pode fazer esse exilado longe de vós? Que pode fazer esse servo sedento de vosso amor, mas tão longe da vossa presença? Aspira ver-vos, mas vossa face se esconde inteiramente dele. Deseja aproximar-se de vós, mas vossa morada é inacessível. Aspira encontrar-vos, mas não sabe onde estais. Tenta procurar-vos, mas desconhece a vossa face” (Liturgia das Horas I, p. 152).

4. No Livro sobre a Virgindade, Santo Ambrósio exorta a alma fiel: “Eis o que o Cristo deseja de ti, eis que escolheu. Ele entra, já que a porta está aberta; não pode faltar pois prometeu que viria. Abraça aquele que procuravas; aproxima-te dele e serás iluminada; segura-o, roga-lhe que não parta logo, suplica-lhe que não se afaste. Porque o Verbo de Deus corre, não se deixa reter pelo tédio ou por negligência. Que tua alma vá encontrá-lo em sua palavra; segue atentamente a doutrina celeste, porque ele passa depressa” (Liturgia das Horas I, p. 1069).

5. Temos, por vezes, a impressão que, por um tempo mais ou menos longo, nos satisfazemos com a repetição das coisas de todos os dias e entramos no esquema do mundo e da monotonia. Vivemos bombardeados por imagens e sensações. Estamos aturdidos. Nossa realidade é complexa e muda a todo momento. A vida se passa com muita velocidade, sempre estamos com pressa. Parece que a única coisa que conta são os resultados imediatos que, uma vez conquistados, apelam para outros e assim vivemos sempre na busca de alguma coisa nova que nos faça sentir bem (prazer, diversão, sucesso, dinheiro). Não moramos em nosso interior . “O caminho para a interioridade hoje se dá num tempo de mudanças, tempo rico de muitos sinais e redescoberta da interioridade e do silêncio. A sociedade secularizada vem focada sobre o indivíduo, fragmentado, com uma identidade fluída (…). Confrontamo-nos com o medo de entrar em nós mesmos, com a pobreza de sentimentos, de afetos, de capacidade de amar. No espaço da interioridade, o silêncio pede a escuta de nós mesmos, dos outros e da realidade (…). Na verdade tornamo-nos estranhos a nós mesmos. O percurso para dentro de nossa interioridade não é só terapêutico para a nossa cultura do barulho, mas também vem a ser um caminho voltado para o acolhimento de uma nova civilização do amor. O caminho para dentro de nossa interioridade e para o silêncio torna-se, então, testemunho de uma opção de vida alternativa” (O Caminho que leva ao lugar do coração, Cúria Geral da OFM).

6. Nossa sociedade é uma sociedade individualista e feita de “picadinhos”, de “pedacinhos”, típica do sistema cultural e econômico . Compramos, vendemos, pregamos, pagamos as contas, presidimos missas de primeira eucaristia, estamos com noivos… tudo picado, tudo como pedaços sem arrumação interior, mandamos o aparelho de som para o técnico e compramos persianas para a sala da Fraternidade. Depois de correr de um lado para o outro, temos vontade de que uma luz brilhe de novo diante de nós e que possamos nos organizar, arrumar as coisas completamente desarrumadas que fazemos, quase por fazer, quase sem convicção. Será preciso reencontrar o caminho do coração.

7. Tudo nos faz identificados com as coisas, muito “entretidos”. Recebemos muitas informações, sofremos impactos e sem nos dar conta tudo vai se colando dentro de nós e se apoderando de nossos sentimentos e de nossa liberdade. Tanta coisa, tanta agitação, que não temos mais capacidade de decidir. Estamos tão ocupados e tão distraídos que não há mais tempo nem espaço para as perguntas que podem ser feitas a respeito do gênero de vida que escolhemos.

8. Sofremos a influência da cultura pobre que foi se instalando com uma falta total de ideias e utopias, egocêntrica e narcisista, sem interesse pelo passado e sem grandes planos para o futuro. Vivemos o presente e somente o presente. Cada um faz o que lhe apetece sem levar em conta o bem profundo do outro e sem respeitar as convicções: corrupção, assédio sexual, vida dupla. Tudo isso vai cegando e nada transcende aos nossos interesses. Há pessoas que talvez só possam ser despertadas deste torpor por uma doença ou uma grande contrariedade da vida.

9. Nós, religiosos no verdor de nossos anos, depois de vivermos uma experiência espiritual em grupos e na busca pessoal de Deus, vislumbramos o Senhor como horizonte de nossas vidas. Ele parecia a água que viria dessedentar nossas gargantas. Fizemos nossa profissão, na simplicidade de nossos corações. Não conseguimos deixar de ser envolvidos pela teia de uma sociedade sem transcendência. Nossa consagração, no entanto, não pode ser colocada entre parênteses apesar de todas as dificuldades. Pode acontecer que religiosos continuem em suas Províncias, mas não experimentem gosto pela vida de oração e realizem os ritos que precisam ser realizados, sem o coração.

10. O caminho de volta à fonte é necessário e fundamental. Os cristãos acreditam que, no fundo da realidade, há um mistério último que pode saciar nossa sede, ou seja, o Amor. Foi isto que revelou Jesus Cristo, um Deus Pai-Mãe que cria por amor com a única finalidade do bem das criaturas. Deus belo e grande ama o mundo e se entrega a todos no rosto do Menino e no corpo do Torturado do Gólgota. Para poder transmitir esta Presença, para que ela se torne palpável será fundamental experimentar Deus como Pai, sentir sua bondade, sua compaixão, experimentar confiança total em sua compaixão, acolher sua oferta de amor. Para podermos refletir em nosso rosto a beleza desse Deus.

11. Não podemos nos acostumar com a mesmice e com a mediocridade. Não basta tocar obras para a frente. Será fundamental fazer tudo a partir do interior. Precisamos voltar a ter a coragem de estar no deserto com o Senhor, nessa tentativa firme de meditar e refletir sobre a Palavra do Senhor. A leitura orante da Bíblia não se trata de uma conversa de “padres” que preparam a homilia de domingos e aproveitam a Leitura orante para expor sua ideias, mas de corações pobres e sedentos de Deus que, no silêncio e na escuta diária, com seus irmãos, se questionam e alimentam o desejo do Senhor em seus corações. Trata-se de inventar uma nova maneira de viver uns com os outros, num interesse verdadeiro e não apenas numa convivência formal. Somos pobres. Dependemos uns dos outros. Trata-se de ser frade sacerdote com o desejo de tornar o Amado de verdade amado.

12. A experiência profunda do humano com relação ao divino contribuiria para romper a imagem que as pessoas têm da Igreja que é, antes de tudo, uma moral. A Igreja tem que ser um lugar onde se possa fazer uma experiência mística: um lugar onde se respire esperança e não condenação, um espaço de pertença na igualdade, e não um lugar em que as pessoas se sintam subjugadas, onde há uns que sabem e outros que não sabem.

13. Será que não temos mais sede? Pode ser que tenhamos nos habituado em nossas rotinas, buscando sentirmo-nos bem, ter uma certa qualidade de vida (um pouco humana demais) e que, pouco a pouco fomos ficando secos por dentro? Onde ficou a paixão que nos movia? Quem sou? Que sentido tem minha vida? Talvez venhamos a tomar consciência do vazio de nossa vida e de que nada nos enche plenamente. Será fundamental buscar interiormente, no centro de minha vida, e me perguntar com amabilidade: O que tenho dentro de mim? Como vivo minha vida religiosa? Que sentido tem a missa para mim? Que sentimentos me habitam? O que há de verdade em mim? Qual é a fonte de minha vida? Talvez seja o momento de fazer silêncio e ouvir o rumor do essencial no fundo do coração.

14. Será importante ouvir com atenção a vida que flui em nós, que nos habita; o amor que se assenta em nossas entranhas e que procura sair e expressar-se; a vida que busca viver; a plenitude que assoma timidamente na medida das possibilidades de nossa limitada condição, mas que, apesar de tudo, se intui. Parar, ler, conversar, confabular, refletir. Ter coisas para dizer aos outros. Não se servir de chavões gastos. Sempre, esse desejo de buscar a Deus. De sede daquilo que pode nos plenificar.

15. O Documento sobre a Formação Permanente pede que seja feito um acompanhamento dos tempos de transição e de crise (mudanças de ministério e de lugar, situações de saúde e existências etc.): através de um discernimento evangélico, ler e reconhecer as “feridas” dos frades e sustentar cada um em uma leitura e narração da própria história à luz da Palavra de Deus, recorrendo também a diversas formas de acompanhamento pessoal; favorecer encontros informais; partilhar os próprios estados reais de ânimo, as esperanças, os sonhos, as expectativas, n. 43). Nesse contexto é que se insere o tema da sede de Deus.

16. O texto mencionado fala em curar as feridas dos frades. Isaías escreveu admirável texto falando do Deus que cura a ferida do povo: “Haverá em toda montanha alta e em toda colina elevada arroios de água corrente, num dia em que muitos serão mortos com o desabamento de seus torreões. A lua brilhará como a luz do sol e o sol brilhará sete vezes mais, como a luz de sete dias, o dia em que o Senhor curar a ferida de seu povo e fizer sarar a lesão de sua chaga” ( Is 30, 25-26).

17. Será preciso continuar a busca do rosto de Deus. Não podemos aceitar que nossa vida religiosa seja deteriorada. Nada e ninguém têm o direito de nos afastar do Amado a quem prometemos todo o amor com a profissão religiosa. Santo Ambrósio, no texto já mencionado, continua: “Aquele que assim busca o Cristo e o encontra pode dizer: Retive-o e não o deixei partir, até que o tenha introduzido na casa da minha mãe, no quarto daquela que me concebeu (Ct 3,4).Qual é a casa de tua mãe e o seu quarto senão a intimidade mais profunda de teu ser?” (Idem, p. 1070).

18. Nesse começo de ano, ainda diante de nossos olhos, o presépio do menino vem suplicar nosso amor e nosso bem querer. Nós buscamos aquele que antes nos procura. Terminamos nossa reflexão com Santo Anselmo, já citado anteriormente: Ensinai-me a vos procurar e mostrai-vos quando vos procuro; pois não posso procurar-vos se não me ensinais nem encontrar-vos senão vos mostrais. Que desejando eu vos procure, procurando vos deseje, amando vos encontre, e encontrando vos ame (Ibid. p 153).

POR FAVOR, DEIXEM ABERTA A PORTA DO CORAÇÃO!

NB: Algumas destas reflexões se inspiraram no número 96 (2008) da revista espanhola Sal Terrae em torno do tema da sede de Deus.

Frei Almir Ribeiro Guimarães, no site www.franciscanos.org.br

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